quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

crónica de um trapo.


Fiquei esquecido algures entre a agulha e o dedal. Sou um trapo vermelho, já um pouco desgastado do tempo. Do tempo e da vida, pois há coisas que, por muito que as minhas linhas sejam resistentes e do mais elegante tecido, não aguentam.

Conheci muita gente ao longo da minha existência. Aqui e ali, entre máquinas de costura, botões e alfinetes de peito, ouvi muitas conversas e participei noutras tantas, no entanto, não percebo porquê, nunca ninguém me escutou. Duvido mesmo que alguma vez tenham reparado em mim; que tenham visto que, sem mim, o casaco, a saia e mesmo as calças teriam um espaço que seria ocupado pelo nada. Um vazio. Um vazio que só eu, trapo viajado, poderia tapar com firmeza.

E foi naquele dia. Naquele dia em que aquela camisola de lã passou eu senti que tinha de fazer parte dela. Queria muito, com todas as minhas forças. De cada vez que ela passa, admirava-a. Ah, como era bela. Entrava na redacção e eu estremecia. Ficava vermelho, sentia o coração a bater tão depressa que tinha receio que alguém reparasse! Ficava inconstante e sentia as minhas linhas confusas na clareza do meu padrão.

E a camisola de lã passava. Passava e olhava-me, tenho a certeza. Sempre na esperança que lhe dissesse um olá, que a minha timidez a par da estupidez, por vezes, não me deixavam pronunciar.

O que é certo é que ainda hoje a camisola de lã passa por mim. O que é certo é que, de quando em vez, saio do armário onde estou com a agulha e o dedal, encho o peito de ar e cumprimento-a. E quando ela passa e vai embora, vão-se embora os trapos que me complementam. Vai embora, no fundo, parte de mim.

2 comentários:

1/2Kg de Broa disse...

Ou muito me engano ou este texto encaixava bem na vida de muita gente!

Bem escrito! ;)

Mistious disse...

Obrigada. :)

Beijinhos,
CReis